365 dni: Este NÃO é mais um texto sobre Síndrome de Estocolmo

Preciso começar admitindo que não li o livro, tampouco pretendo lê-lo. Não por pudor, moralidade ou qualquer outro conservadorismo do gênero. Simplesmente porque a vida é muito curta para perder tempo e já perdi quase duas horas assistindo o filme. Logo, esse texto será uma crítica dirigida ao filme, se a carapuça servirá para o livro deixo a cargo de quem leu para responder. Dito isso, caso eu seja demasiadamente enfática em minhas críticas e o livro não corresponda ao que irei debater a seguir, sintam-se à vontade para comentarem.
     No entanto, antes de começar a tecer meus comentários sobre o filme, primeiro preciso mencionar o elefante branco na sala: Sim, é um filme/livro que romantiza a Síndrome de Estocolmo, a personagem principal foi sequestrada e forçada a viver sob o mesmo teto e constante vigilância de seu sequestrador e se apaixona por ele. Isso é óbvio.
     Acho difícil, depois da polêmica toda que isso gerou, que alguém tenha começado a ler o livro ou a assistir ao filme ignorando essa narrativa principal. Sendo otimista, coisa que geralmente não sou, também acho difícil que o filme incitará comportamentos de violência sexual contra a mulher, não mais do que já ocorre. É a mesma discussão rasa de que videogames (mais especificamente jogos de tiro) incitam comportamentos violentos. E por outro lado, mas ainda sob um viés otimista, a repercussão da polêmica é mais válida do que o filme em si, afinal, sexo sem consentimento e/ou sob qualquer tipo de pressão psicológica (seja o suposto “dever” da esposa de servir indubitavelmente seu marido, seja sob o jugo de um mafioso italiano) é violência sexual, é estupro. Ponto.
     Retirado esse elefante branco, vamos ao que interessa. O filme 365 dni (ou 365 days ou 365 dias), baseado no livro homônimo da autora polonesa Blanka Lipinska, chegou à Netflix por esses dias e rapidamente viralizou. No Twitter as reações ao filme e ao livro – cujos direito de tradução ainda não foram adquiridos por nenhuma editora brasileira – são as mais diversas, desde críticas à romantização da Síndrome de Estocolmo, denúncias de casos de sequestro e estupros reais, memes sobre os traficantes reais versus os ficcionais, comparações com o filme/livro Cinquenta tons de cinza, e, as mais frequentes: exaltação às cenas de sexo.
     Devo dizer, primeiramente, que entendo que somos uma sociedade acostumada com a estética norte-americana, logo, produções estrangeiras de outros países (exceto os Estados Unidos) às vezes soam estranhas para nós. Quem nunca ouviu falar do estranho humor britânico? Ou dos coloridíssimos melodramas musicais de Bollywood? Pois é, tudo uma questão cultural. Mas como já dizia a letra de Geração Coca-Cola do Legião Urbana: desde criança consumimos os “enlatados dos U.S.A.”, seja sob a forma de comida ou de arte. Com isso, parte do nosso senso estético é moldado de acordo com padrões estadunidenses. Embora essa discussão por si só já possa render uma tese de doutorado, o que quero destacar é o meu papel de telespectadora parcial. O que eu quero dizer com isso é que tenho (sim!) enormes críticas ao monopólio norte-americano da cultura mundial, mas que isso tampouco me impede de apreciar seus filmes.
     Dito isso, vamos às cenas de sexo. Os atores são bonitos? São. Interpretam realisticamente? Sim. Isso basta para tornar o filme interessante? Não. Se 365 dias fosse um filme brasileiro certamente seria classificado como pornochanchada. Se aparecesse o nu frontal masculino então… creio que poderia ser simplesmente chamado de pornô (já há diversos questionamentos online acerca da veracidade dos atos sexuais do filme).
     Falta tudo em 365 dni, exceto sexo e dinheiro. Falta roteiro, falta uma estética erótica, falta construção de personagens… Por outro lado sobra cenas de ostentação, consumo exacerbado e enquadramentos de primeiríssimo plano (com big close-up na cara das atrizes durante as cenas de sexo oral) e de péssimo gosto. Para mim, se a falta de história e o exagero das cenas de sexo é a marca registrada de filmes pornô, logo, 365 dni pode ser classificado como tal.
     Longe de estabelecer uma conexão entre os personagens – fato pelo qual não quis focar esse texto na questão da Síndrome de Estocolmo –, o filme entrega simplesmente uma narrativa de exultação ao sexo e ao dinheiro. E isso sim, no meu ponto de vista, é problemático. Essa temática não é nova, esteve presente em Cinquenta tons de cinza, daí voltamos mais um pouco e também a vemos em Crepúsculo, daí voltamos mais ainda e a encontramos em A Bela e a Fera.
     Qual a diferença de 365 dni para esses filmes/livros então? Para mim, trata-se, primeiramente, de uma questão de estética, mas como já deixamos claro num parágrafo acima, isso pode ser devido à influência norte-americana. De todo modo, não deixo de me chocar com a comparação das cenas de 365 dni com Cinquenta tons de cinza, pois não há o que ser comparado, na minha opinião. As cenas de Christian Grey e Anastasia Steele tinham direção, roteiro, enquadramento, iluminação e… Beyoncé, preciso dizer algo mais?
     “Imagine um macho-alfa, que sempre sabe o que quer. Ele cuida de você e te defende. Quando você está com ele, se sente uma criança. Ele realiza todas as suas fantasias sexuais.” MANO DO CÉU, não tem uma frase aceitável nesse monólogo! Quem em sã consciência coloca “criança” e “sexo” dentro de um mesmo contexto comunicacional? E pior, esse “contexto” foi comercializado para milhares quiçá milhões de pessoas assistirem. Que saudade de ler sobre a “deusa interior” da Anastasia, porque ao menos isso me fazia rir em vez sentir desprezo pela humanidade.
     Comparar 365 dni com Cinquenta tons de cinza é como comparar as falas ofensivas de Bolsonaro com as falas desconexas da Dilma. Eu não sei vocês, mas eu prefiro mil vezes ouvir sobre a figura oculta do cachorro atrás da criança que “é algo muito importante”, do que “não te estupro porque você não merece”. Para uma pessoa com um mínimo de sensibilidade e empatia não há comparação.
     Outro ponto que merece destaque sobre o profundo abismo que separa 365 dni de outras obras com temática similar, na minha opinião, é simplesmente a questão das referências literárias. Confesso que sou uma pessoa extremamente influenciável quando se trata de livros (se ainda não leram meu texto sobre segundas chances, leiam!), portanto, não tenho vergonha nenhuma de admitir que meu amor pelos romances clássicos, como Jane Austen, começou depois que li Crepúsculo e por indicação da personagem principal da saga. Cinquenta tons de cinza também se utiliza desse recurso, assim como A Bela e a Fera. Livros que indicam livros é muito amor!
     Enfim, como espero que tenha ficado claro, minha crítica aqui é bem específica ao filme 365 dni e sua falta de narrativa, não ao gênero literário. Sex & Money só vale a pena ser exaltado intensamente se estivermos nos referindo ao livro homônimo de duas excelentes economistas políticas da comunicação: Ellen Riordan e Eileen R. Meehan. De resto, uma história baseada APENAS em sexo e dinheiro é um completo desserviço ao gênero pornô-soft – literatura erótica, livros hot, ou como queiram chamar.
     Para finalizar, deixo o questionamento de Riordan e Meehan que se encaixa perfeitamente com o nosso papo “entre aspas” de hoje:

“Para uma economista política feminista comprometida com a práxis, é crucial compreender as vontades, desejos e necessidades das mulheres. Ainda que, no final, esses sentimentos possam ser direcionados pelo capitalismo e adquiridos por práticas culturais, do que adianta se grupos de mulheres não entendem sua participação, relação e exploração pelo capitalismo? Como podemos trabalhar para entender a resistência sem descartá-la como incluída nos sistemas totalizadores do patriarcado e do capitalismo, ou sem celebrá-la, ignorando as condições materiais históricas que a permitem?” (RIORDAN; MEEHAN, 2002, p. 11-12, tradução nossa)

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